segunda-feira, 19 de abril de 2010

INVISIBLE SHAPES

INVISIBLE SHAPES Fernando Gaspar / Alphart Gallery
Setembro de 2009
























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Se definir o homem no seu princípio é tão difícil como será hoje definir a arte, certo parece ser que nos seus primórdios algo distinguiu a criação Homem de outras criações do mundo material. Por muito rudimentar que fosse e ainda que, muito contaminada com aquilo que mais tarde viriam a ser outras disciplinas da inquietação humana, a arte ou a habilidade excepcional, muniu a criatura Homem como a nenhum outro ser criado, de ferramenta para o exorcismo das suas dúvidas, expiação dos seus medos e afirmação do seu respeito.
Nessa manhã da consciência humana, surge a necessidade e o apelo da comunicação e ligação com o mistério e os planos superiores. A arte, pelos seus símbolos, cores e acordes, foi desde o princípio, a ferramenta da comunhão com o divino. Mágica e reservada, como mágicos e reservados eram os sítios, o tempo e quem a praticava.
Das obras artísticas que ao longo do Tempo nos foram legadas, as Catedrais Góticas, […] no âmbito de Arquitectura e não só, merecem uma atenção especial e cuidada, devendo a sua abordagem, tanto quanto o possível, ser feita tendo em conta os vários eixos do conhecimento técnico e filosófico.
[…] Circunstanciando no tempo e na desenvoltura tecnológica do espaço físico em que foram erigidas, revelam só por si, ser obra profundamente complexa e abrangente, muito para além do simples labor da alvenaria, deixando claro […] os propósitos do seu alcance filosófico e transcendental.
O próprio nome do estilo arquitectónico arrasta algumas dúvidas na sua origem: gótico de Godos, povo da Germânia Oriental, oriunda da Escandinávia ou Gótico como corruptela linguística de Goético, podendo Arte Gótica provir de Arte Goética e assim sendo, significar Arte Mágica. Pode também ter origem na expressão Art Goth ou de Argot. Neste caso, e tal como consta dos dicionários, quer dizer linguagem particular a todos os indivíduos que têm interesse em comunicar os seus pensamentos sem serem compreendidos pelos que os rodeiam. Em qualquer dos casos fica evidente a excelência filosófica da paternidade do termo, ao que a este fenómeno acrescenta valiosa matéria. Devem também estas estruturas ser entendidas à época como casa de culto não só à grande tendência cristã hegemonizante como também de outras correntes e tendências religiosas pagãs ainda muito vivas e praticadas na Europa medieval. Seriam no seu contexto sagrado surpreendentes plataformas de tolerância ecuménica, lugar de entendimentos políticos, acertos económicos, apoio social, confronto e discussão intelectual e até de tratamento de maleitas frequentes.
No que diz respeito aos locais de edificação, parece não restar dúvida documental sobre a prática sistemática de aproveitar locais onde a carga do sagrado se evidenciava desde épocas remotas, em leis e correntes telúricas já conhecidas pela sua amplitude energética, propícias ao desenvolvimento espiritual, que favoreciam a saúde e proporcionavam boas condições para o estabelecimento de canais de ligação entre os mundos. Em muitos casos a construção ocorreu sobre estruturas já edificadas, utilizando como material construtivo alguns dos materiais de demolição, cuja sensibilidade a estes fenómenos tinha sido já validada e comprovada.
A Geometria Sagrada era a lei fundamental neste exercício tectónico. Sujeita a forças naturais do universo, ela garante resultados constantes, independentemente da motivação religiosa ou politica de quem a pratica, tal como as leis que regem a electricidade, ou a hidráulica, constantes neste ou noutro tempo desde que se cumpram os fundamentos operativos que a sua física determine.
A planta destas catedrais obedecia ao desenho da Cruz Latina, sob grelha harmónica proporcionada e vinculada a rácios precisos, dividindo-se o seu traçado em três partes correspondendo ao Corpo do Homem, Alma da Natureza e ao Espírito de Deus.
Depois de definido o trabalho ao nível do solo, passava-se à elevação do templo. As proporções desta segunda fase da construção deviam contemplar a necessidade de, concluída a obra, ter criado uma enorme caixa de ressonância das vibrações energéticas telúricas do local. Estas particularidades vibratórias acentuavam o fenómeno sonoro, funcionando as catedrais góticas como instrumentos musicais cuja afinação dependia da forma mais ou menos correcta como tinham sido executadas, sendo a altura das abóbadas responsáveis pelas variações tonais do edifício. Os padrões harmónicos de algumas das mais famosas catedrais da Europa estão assinalados na pedra da sua fachada ocidental.
É pois evidente que, obras sujeitas a leis e procedimentos tão precisos e complexos só poderiam ser levados à prática por obreiros munidos de conhecimentos muito acima dos padrões da época. Numa altura de grandes convulsões políticas sociais e religiosas no continente europeu, era extremamente apetecível o domínio e o poder sobre a comunidade que detinha tal perícia e conhecimento, a fim de assegurar e fortalecer, por seu turno, a soberania nas cidades e dos estados.
A intensa procura pelos soberanos de então, empossados ou com pretensões, por fazedores de tais obras, obrigou estas comunidades de arquitectos, construtores e pedreiros a criar Guildas - Corporações, Grémios ou Lojas, onde de forma organizada e embora mantendo íntimos laços com a igreja, se passavam a organizar em regime de semi-secretismo e relativamente laicas, partilhando o saber, assim como garantindo a sua protecção pessoal, independência política e religiosa e mais importante a integridade patrimonial da riqueza que tais conhecimentos representavam.
Após a época das cruzadas, os obreiros do Sacro Império Germânico, bem como de alguns dos países limítrofes de língua germânica, criaram a mais respeitada de todas as congregações de lojas: a Bauhütte.
Estas formas de organização exigiam aos seus membros, para além de reconhecido mérito no mister, rigorosas condutas disciplinares e morais, assim como especiais formas de comunicação e de passagem de conhecimentos que confinou na adaptação e criação de códigos e sinais secretos […].
A mobilidade a que estavam sujeitos em todo o território continental e insular da Europa, mobilidade inaudita na Idade Média, acentuou a pertinência da prática desses rituais de sigilo e de reconhecimento entre pares, tanto da sua condição de Pedreiro Livre como do seu grau de conhecimento.
[…] Uma das consequências desta forma codificada de actuar foi a criação de Diagramas Matrizes que determinava a identificação da Loja e de cada um dos seus membros entre os demais e entre as outras lojas. As letras e os monogramas de marcação do período Bizantino e Românico eram agora substituídos por diagramas geométricos complexos, que permitiam a criação de intermináveis chaves, representando a marca única e pessoal de qualquer um dos pedreiros conhecidos.
O domínio de todos os níveis de geometria era assim uma prerrogativa do pedreiro livre. Com esse conhecimento podia não só provar a validade da sua marca, para efeitos de identificação, como reconhecer alguma outra com que fosse confrontado.
Conhecem-se quatro diagramas geométricos básicos, que representavam as quatro grandes lojas de obreiros construtores: a de Colónia, Estrasburgo, Viena e Berna. Os modelos destes diagramas eram: ad quadratum, ad triangulum e outros dois mais complexos, o quadrifólio que, baseando-se na geometria do
quadrado, integra também vesicas no conjunto e o trifólio, baseado na combinação de círculos e triângulos equiláteros (fig.1).
























Fig. 1

Estas quatro matrizes constituíam-se numa ferramenta fundamental, sendo usada, além de no traçado de siglas, no desenho de campanários, capitéis, rosáceas, etc.
No entanto, para obter todos os traçados usados pelos construtores do gótico, quer no desenho de pormenores arquitectónicos, quer ainda na definição de plantas e alçados, no dimensionamento e proporcionamento global das edificações, é necessário acrescentar uma outra matriz a essa ferramenta: o Ponto de Bauhütte, que deve o seu nome à confederação antes referida.
Este Ponto não é explicado em nenhum registo conhecido, constituindo provavelmente o grande segredo geométrico dos mestres construtores de catedrais, só acessível no último grau de iniciação. […]

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Diagramas Matrizes e todo o fascínio que lhe está subjacente, foram portanto, o tema inspirador e motivador e a razão de ser do conjunto de trabalhos de pintura a que dei o nome de INVISIBLE SHAPES em exposição […] feita em 2009:

14 trabalhos de desenho e colagem.
Suporte quadrado – Terra, corpo e matéria.
Branco base. Princípio. Branco inicial.
Há em parte do desenho a matriz comum que a todos faz com que sejam um só.
Jogo, tensões e silêncios. Espaços, pontos, cruzamentos.
Diâmetro em compromisso.
Circunferência que solta outras formas e se subtrai.
Formas. Invisíveis.
Ordem, sequencia e proporção como ferramentas para a edificação em equilíbrio.
Números e letras que escondem e revelam, que enfatizam o percurso do
lápis e da razão. Códigos para uma viagem.

In cat. IS_2009_fg



Neste trabalho adoptei, sintetizando e depurando, o modelo de diagrama trifólio, desenvolvendo um conjunto de composições plásticas que, embora arredadas do propósito de reproduzir marcas pessoais, mantém e confirmam o carácter único de cada uma das peças tendo todas elas sido criadas sobre o mesmo desenho matricial […].

Com efeito, na génese deste trabalho foram consideradas três formas geométricas base: no suporte o quadrado símbolo da estabilidade e do microcosmo; nele o círculo desenho primordial, completo, uno e integral; o triângulo equilátero, a divindade, harmonia e proporção.
Traçadas linhas que dividem e multiplicam, mediatrizes, bissectrizes, pontos que se encontram, eixos, intercepções… como se na terra se fosse achando em finas linhas a energia que regula os ímpetos e estabelece a ordem das coisas. Sobre estas, como numa dança ritual, vão rodopiando em sentido dextro-cêntrico (das mais toscas e imprecisas nos primeiros quadros às mais rigorosas e intencionais da última fase do conjunto) formas matéricas e tácteis que coladas ao suporte branco deixam a nítida sensação de transitoriedade do lugar que ocupam, como se a qualquer momento pudessem retomar a dança e assentar em outro lugar do quadro gerando uma nova composição.
É deste conjunto de leituras e estímulos cognitivos e sensoriais que se extrai o sentido e o propósito da exposição: se ela, na sua fase uterina, deriva dos ancestrais diagramas matrizes, nasce e cresce autonomizando-se e recria na sua fase mais solar, a sua própria dinâmica conceptual, a sua alegoria goética, propondo para a reflexão, não só este testemunho de que, sob ou sobre a mesma malha matricial é possível desenhar destinos diversos correlacionados como a tomada de consciência da eterna temporalidade daquilo que percepcionamos.

Fernando Gaspar
2009/2010





































fernando gaspar, IS, 2009, acrílico, colagem e grafite sobre tela, 60x60
(a blueline, diagramas matrizes que deram origem à composição)



catálogo digital:
http://www.scribd.com/doc/30199802/Invisible-Shapes-Fernando-Gaspar

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