terça-feira, 16 de março de 2010

O Afecto, o Tempo e o Rio

itinerante 2008_2009
Cáceres, Salamanca, Zamora, valladolid, Saragoça, Soria...
Fundación Caja Duero
fernando gaspar_pintura



Catorze Textos Para Quinze Pinturas
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Este rio só existe porque o sinto. E pinto. E vejo a deslizar de encontro ao mar. E vejo a alisar as rochas que se espreguiçam sobre as margens. Este rio só existe porque o pinto. E sinto. E sonho com o galgar furioso das águas. E sonho com ranchos de mulheres depenicando a natureza. Este rio só existe porque o sinto e porque o pinto. E canto o castanho dos montes que se aninham lá ao fundo. E canto o branco de amendoeiras e estevas que se estendem para um e para o outro lado da fronteira. E vou assim talhando a duas cores o reboliço, o desassossego e a alegria da insólita paisagem.
(...)
O tempo é um contratempo se no tempo quero buscar o equilíbrio e o sentido das cores que o próprio tempo tingiu ao longo do tempo. Brinco com o tempo porque o tempo me ensinou a não temer os seus contratempos. O tempo tem curvas e contracurvas, tempos e contratempos. O tempo é arquitecto, pintor e escultor desta inebriante paisagem que o rio também ajudou a construir. Por isso o tempo é o rio e o rio é o tempo e assim será ao longo dos tempos. O rio e o tempo criaram espaços e formas que protegem e acolhem as gentes dos dois lados da fronteira. Há muito tempo e sob todos os tipos de tempo...
(...)
Pinto a Primavera e procuro fazer a síntese de todas as cores que enchem os montes e vales destas paragens. Canto o alvoroço e a exaltação que invade a natureza depois da quietude quase morta do Inverno. Misturo os sentidos com o abrir das flores que cobrem as encostas atravessadas pelo rio. Fixo um bando de pássaros que voa em espirais contínuas sobre uma grande barca que baloiça lentamente rio acima. Destaco as flores brancas da esteva que brotam da terra castanha e pedregosa. Sonho em castanho e branco. Tudo renasce em duas cores no lento bambolear da geométrica imaginação.
(...)
Falo-te em enfrentar de vez o branco imenso do papel e nunca mais parar de dizer o que vejo nas aldeias todas em que ouso vaguear. Tropeço na miragem da escrita. Cabeça a cem à hora voando e discorrendo sobre os sonhos de cantar a vida toda num papel! A vida toda na ponta da caneta. Estás meio aninhado em frente a mais uma enorme tela branca. Pareces espreitar por baixo de uma mancha de tinta acastanhada ainda fresca. Preenches os espaços com rigor desalinhado. Vejo pela janela a sublime inspiração da tua escrita. E saio devagar apertando a caneta contra o centro do meu peito.

Domingos Fernandes
São Pedro do Estoril
Abril de 2007
in cat. O Afecto, o Tempo e o Rio





















fotos da exposição no Palácio Garcigrande em Salamanca

2 comentários:

  1. Bem haja!!
    Tenho acompanhado o blog e o site(site super dinâmico e imprevisivel ++).
    Acho o seu trabalho "brutal"!!!Boa descoberta!
    fg

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